No coração da instituição que deveria ser a guardiã da vasta riqueza natural de Mato Grosso, um esquema delituoso operava com método e audácia, drenando recursos e corroendo a confiança pública. A Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA) viu três de seus servidores – O.J.S.V., C.R.P.C. e C.H.M.S. – serem condenados pela Justiça a duras penas de reclusão e à perda de seus cargos. A sentença, proferida pela juíza Alethea Assunção Santos, da 7ª Vara Criminal de Cuiabá, é um retrato contundente de como a máquina pública foi utilizada para fins particulares, com consequências diretas para a capacidade de fiscalização ambiental do estado.
Os réus foram considerados culpados pelos crimes de associação criminosa, corrupção passiva e peculato, este último praticado diversas vezes. A magistrada, em sua decisão, não poupou palavras para descrever a gravidade das condutas, ressaltando a “reprovabilidade acentuada” dos atos. O documento judicial detalha como o trio, valendo-se de suas posições e do acesso facilitado a informações e bens da SEMA, engendrou um sistema para desviar recursos que deveriam ser empregados na proteção ambiental. Um dos réus no processo, J. de D. C. da S., foi absolvido por insuficiência de provas, enquanto a punibilidade de Josué Silva Guedes foi extinta devido ao seu falecimento.
Fiscalização em xeque: o dreno dos recursos
A forma como o esquema funcionava revela um planejamento meticuloso. Um dos pilares da fraude, conforme descrito na sentença com base nas investigações e provas colhidas, era o desvio de combustíveis. A juíza apontou que ficou comprovada a “materialidade do crime de peculato no que se refere ao desvio de 5.750,02 litros de gasolina”. Esse combustível, essencial para as lanchas e veículos de fiscalização, era desviado sob a justificativa de abastecer motores que, segundo apurado, estavam inoperantes ou sequer existiam no patrimônio da secretaria. O resultado? Menos fiscalização nas matas e rios, e mais espaço para a criminalidade ambiental.
Além do combustível, a sentença também evidencia o desaparecimento de materiais apreendidos. Bens que eram fruto do trabalho de fiscalização, como petrechos de pesca ilegais ou outros itens confiscados em operações, simplesmente sumiam dos depósitos da SEMA. A decisão judicial menciona explicitamente que os réus “tinham o domínio final sobre os fatos e concorreram para a infração penal, dela se beneficiando”. Essa afirmação da juíza é demolidora, pois escancara a traição à função pública.
Um esquema enraizado com prejuízo milionário
O Ministério Público, em sua denúncia, pintou um quadro ainda mais sombrio da profundidade do esquema, que se estendeu por um período considerável. A promotoria destacou um dado alarmante: uma auditoria teria constatado nada menos que 559 abastecimentos realizados em motores que estavam inutilizados ou inservíveis. Essas fraudes ocorreram entre julho de 2011 e outubro de 2012. Um verdadeiro dreno nos cofres públicos.
O prejuízo financeiro causado apenas por essa modalidade de desvio, à época, foi calculado pela auditoria em R$ 241.537,27. Corrigido para os dias atuais, segundo cálculo realizado pela redação do ConexãoMT, esse montante alcançaria a cifra expressiva de aproximadamente R$1.271.508,97*(um milhão e duzentos e setenta e um mil quinhentos e oito reais e noventa e sete centavos) que deixaram de ser investidos na proteção ambiental para, supostamente, abastecer um esquema de corrupção.
Diante da dimensão dos danos, o Ministério Público pleiteou na denúncia a condenação de todos os acusados ao pagamento de indenização a título de danos morais e materiais coletivos. O argumento era de que as ações do grupo não só lesaram o erário, mas também feriram de morte a moralidade administrativa e a confiança da sociedade na SEMA, além de prejudicarem a coletividade ao minar a proteção ambiental.
Contudo, na sentença, a juíza Alethea Assunção Santos indeferiu este pedido específico de condenação por danos coletivos na esfera criminal. A magistrada ponderou que, embora os fatos fossem graves e o prejuízo evidente, “a esfera criminal não é a via adequada para a apuração e liquidação de tais danos, que demandam dilação probatória específica, mais afeita ao juízo cível”. A juíza ressaltou que existem instrumentos próprios, como a Ação Civil Pública, para buscar essa reparação integral, deixando a porta aberta para que o MP ou outros legitimados busquem essa compensação na instância correta.
A palavra da Justiça: dolo intenso e prejuízo à imagem pública
Ao dosar as penas, que para O.J.S.V. chegaram a 11 anos, 9 meses e 23 dias de reclusão, e para C.R.P.C. e C.H.M.S., a 10 anos, 1 mês e 23 dias de reclusão, a juíza considerou a “culpabilidade exacerbada” dos réus. A sentença destaca que eles agiram com “dolo intenso e premeditação”, demonstrando um claro desprezo pelos deveres inerentes aos cargos que ocupavam.
Um dos trechos mais impactantes da sentença é quando a magistrada afirma que “a conduta dos réus demonstrou total menoscabo para com o erário e a função pública que exerciam, utilizando-se dos cargos para locupletarem-se ilicitamente”. Essa constatação judicial reforça a dimensão do dano, que vai além do prejuízo financeiro. Trata-se, também, de uma mácula profunda na imagem da administração pública, especialmente em um órgão com a missão crítica de proteger o meio ambiente.
A perda do cargo público, também determinada na sentença, foi justificada como “medida necessária para resguardar a moralidade administrativa e a probidade no exercício da função pública”. É um recado direto: o serviço público não pode ser um trampolim para a ilegalidade. O Ministério Público, ao longo de anos, teceu a colcha de retalhos probatória com documentos, auditorias e depoimentos, sustentando a acusação de que o grupo agiu com “vínculo associativo permanente e estável”.
A condenação imposta representa uma vitória da Justiça, mas também acende um alerta urgente para a necessidade de mecanismos de controle mais rigorosos. Afinal, a proteção do vasto e ameaçado patrimônio ambiental de Mato Grosso depende da integridade de quem tem o dever de guardá-lo.
Descomplicando o juridiquês:
- Peculato: É o crime cometido por funcionário público que desvia ou se apropria de dinheiro, valor ou qualquer outro bem público, de que tem a posse em razão do cargo.
- Corrupção Passiva: Ocorre quando um funcionário público solicita, recebe ou aceita promessa de vantagem indevida (como propina) para si ou para outra pessoa, em troca de fazer ou deixar de fazer algo relacionado à sua função.
- Associação Criminosa: Acontece quando três ou mais pessoas se unem de forma estável e organizada com o objetivo de cometer crimes.
- Sentença: É a decisão final dada por um juiz ao final de um processo judicial.
- Denúncia: É a peça inicial de um processo criminal, apresentada pelo Ministério Público, na qual se formaliza a acusação contra alguém.
- Ministério Público (MP): Instituição responsável por defender os interesses da sociedade perante a Justiça. No processo criminal, é quem faz a acusação.
- Danos Morais e Materiais Coletivos: São prejuízos que atingem toda uma comunidade ou a sociedade. O dano material se refere a perdas financeiras ou patrimoniais; o dano moral, a uma ofensa a valores e interesses coletivos.
- Ação Civil Pública: É um tipo de processo judicial utilizado para defender direitos e interesses de toda a sociedade, como a proteção ao meio ambiente, ao consumidor ou ao patrimônio público.
*Esclarecimento sobre o cálculo: Os abastecimentos citados ocorreram entre julho de 2011 e outubro de 2012. Para melhor entendimento, na atualização do valor, a redação do ConexãoMT considerou a data do último registro de abastecimento ilícito mencionado (outubro de 2012), ou seja, o valor esta subestimado.